20/08/2012 -
O desafio dos pais na nova família
Há pais que passam 10 minutos com suas crianças, mas a qualidade da relação é tão intensa que se nota, pelo brilho dos olhares, sentimentos de verdadeira adoração mútua.
É com amor e alegria que se constroem seres humanos em que o sentimento de humanidade é tanto, que fica fácil transcender as dificuldades do caminho e alcançar os objetivos almejados”.
A orientação é do palestrante José Amaral, que esteve em Abaeté dia 04 de julho, participando de dois encontros, na Caixa Federal e no Cefac. Após as palestras, ele falou ao Nosso Jornal sobre “Os desafios da Família do Século 21”, adiantando alguns temas que apresentará no 1º Seminário promovido pelo Centro Espírita Fé, Amor e Caridade (Cefac), de 16 a 18 de novembro. Confira a entrevista:
Na sua avaliação, quais os grandes desafios dos pais frente à família do século 21?
Na minha avaliação, o grande desafio dos pais hoje é lidar com a microfamília, que é a chamada família nuclear, que ficou muito pequena.
Quem foi educado há mais de 50 anos pegou um tempo em que a família era a fonte principal de referências na construção de valores e modos de ser. Aprendia-se a ser um ser humano adulto dentro de um clima de afetividade e aconchego familiar.
A família era, em sua maioria, estruturada na convivência entre pai, mãe e filhos, tios, primos e avós, num mesmo espaço existencial, em que todos sabiam de todos e se preocupavam com todos.
Hoje, o número de filhos é menor, mas os desafios aumentaram. Uma coisa é você educar dez filhos, onde a própria relação entre os irmãos já é um processo de educação, a criança aprende a lidar bem com as frustrações, com os limites, porque o limite já é a própria convivência.
Quando você diminui a família, a educação fica complicadíssima. Um filho único não tem limites, não tem os barramentos comuns em uma família maior.
E o que acontece hoje em dia? Os pais saem para trabalhar, muitas vezes passam o dia todo fora, e esse filho é terceirizado. Aí ele se transforma na “criança saleiro”, aquela que fica passando de mão em mão: às sete horas da manhã, alguém a leva pra escolinha de futebol, às dez horas da manhã leva pra escolinha de inglês, mais à tarde leva pra escolinha não sei das quantas... Às seis e meia da tarde, essa criança está cansada, prostrada, com uma agenda mais cheia que a de um executivo de multinacional...
A criança perde o contato com a família, e os pais se transformam em pais de final de semana. Aí, com peninha das crianças e na tentativa de aplacar suas culpas, não conseguem colocar limites e dão tudo que a sociedade consumista tem para oferecer aos filhos.
Nesse contexto, os meninos se tornam os todo poderosos que saem, que não respeitam regras, que não respeitam o mínimo de cidadania, que não sabem lidar com as frustrações, nem conviver em sociedade.
Qual seria a solução?
Educação. Limites. Consciência de que, sem limites, essa criança não é capaz de construir ou constituir uma individualidade, uma subjetividade plena. Até para promover uma revolução, uma desobediência, ela precisa saber onde está o limite. Se ela quer pular o muro, precisa saber onde está o muro, para que tenha consciência do seu espaço e do seu limite. Quando esse muro não existe, a criança fica perdida, sem o referencial para saber quem ela é, o que deve fazer, o que deve revolucionar. É por não ter essa referência que, hoje, muitas vezes, os nossos jovens são muito mais inseguros, muito mais infelizes, muito mais aborrecidos...
No meu ponto de vista, educação é, basicamente, colocar a criança diante de frustrações, para que ela aprenda a lidar com isso. Se uma criança de três anos está brincando prazerosamente, quando você a chama para tomar banho, obviamente ela vai falar que não, porque você está tirando-a do prazer. A sua insistência vai deixá-la frustrada, mas ao mesmo tempo vai lhe permitir a construção de uma individualidade, porque ela vai perceber duas coisas: o desejo dela, “eu não quero tomar banho”, e o desejo de outra pessoa que “quer que ela vá tomar banho”. Isso faz com que ela se separe do outro e se perceba.
Quando você coloca o muro, o limite, você permite que essa criatura se estruture numa identidade. E é esse ser consciente que vai se tornar um cidadão, a pessoa adulta, madura, sensata, que é capaz de lidar com o outro, porque sabe que existe o outro. Ele desenvlve a alteridade, a compaixão, a misericórdia, todos os valores humanos em torno disso aí.
E caso contrário, se é sempre a vontade da criança que prevalece?
Ela simplesmente não se diferencia do outro. Então, faz a vontade dela, achando que é a mesma vontade do outro. Se está com vontade de botar fogo num índio, compra dois litros de álcool, joga em cima dele e taca fogo, porque ela quer, é o seu desejo, e o seu desejo é maior do que qualquer coisa. Se eu não me diferencio do índio e se não está doendo em mim, eu não me importo. Não sou capaz de sentir a dor, as emoções do outro, de fazer um movimento de alteridade, de empatia.
José Amaral
Isso pode estar atrás da violência, tão presente na nossa sociedade?
Na minha opinião, a base de toda essa violência é exatamente a falta de aprender a lidar com as nossas frustrações e de construir a nossa individualidade, a nossa maturidade. Isso faz com que, ao invés de optar pelas manifestações do afeto, a gente vá para as manifestações da violência.
São as duas vias, freudianamente falando: tánatos e morte, ou eros e vida. Ou você tem o princípio do eros, que são os afetos, a sexualidade, as relações genuinamente humanas, ou tem a negação disso, que seria a violência, a não-diferenciação do outro. Então, a namorada termina com o namorado, e ele a mata, porque não consegue lidar com a frustração, não aceita ouvir “não”. Se ninguém colocou o limite, a base na hora certa, isso não existe para ele.
E qual o papel da escola nesse contexto?
Com as transformações das famílias ao longo dos tempos, houve, naturalmente, uma migração da educação, que era eminentemente dentro de casa, no seio da família, para as escolas.
Antigamente, aprendíamos quase que por osmose, porque convivíamos com o pai e a mãe o dia inteiro. Minha mãe se casou aos 13 anos e deu conta do recado, porque, desde pequenininha, assimilava o que minha avó fazia. Aos 8 anos, ela assistiu a mãe dar à luz ao irmãozinho, cuidou dele e da casa enquanto a mãe estava de resguardo.
Quando aconteceu a migração de uma vidinha simples no campo pra cidade, os pais tiveram que sair para trabalhar e quem ficou de referência para esse filho? Ele foi mandado pra escola.
E será que escola dá realmente educação, no sentido próprio do termo, ou ela dá instrução? Como você faz isso com 40 ou 50 alunos e um professor, às vezes, mais perdido do que tudo em sala de aula?
Esse é um tema interessante para ser discutido neste período de campanha eleitoral.
Sim, é preciso atentar para isso, exatamente para ver até onde se podem melhorar as políticas públicas conscientemente, no resguardo do processo educativo, de construção de cultura, de cidadania consciente, livre, madura. Esse é o grande desafio nosso.
Até que ponto a escola pode fazer isso? Até que ponto é preciso fazer a integração da família com a escola? Isso ainda é muito novo e desafiador, sobretudo na nossa cultura, cada vez mais individualista.
Hoje, é comum o filho chegar em casa e se enfurnar dentro do quarto. Lá tem todos os recursos de que precisa, tem computador, tem som, TV. Alguns quartos têm até microondas, têm frigobar, ele mesmo faz a sua comida. Às vezes, se comunica com as pessoas da família via e-mail, facebook, msn, celular...
Cadê o contato? Cadê o almoço junto, olho no olho? Desde que o mundo é mundo, nós nos reunimos em torno de uma fogueira, olhando nos olhos das pessoas que fazem parte do nosso círculo familiar, do nosso grupo social, estabelecendo esse contato, essa conexão, aprendendo e ensinando.
Nos últimos tempos, vemos famílias de solitários: um solitário num quarto, um solitário no outro, um solitário na sala, um solitário na cozinha... A conexão se perdeu, resultado de um mundo onde cada um de nós tem suas agendas pessoais, que, muitas vezes, não se entrelaçam. Então, a gente vai se separando, se tornando uma sociedade de indivíduos tristes, adoecidos.
Podemos dizer que a evolução afetiva, moral e espiritual não acompanhou a evolução tecnológica?
Sim, a minha percepção clara é que nós evoluímos muito na técnica, mas deixamos de lado os afetos. Os laços afetivos ficaram capengas ao longo do tempo.
Na minha infância, em Divinópolis, as casas não tinham muros. O máximo que tinha era uma cerca de bambu no fundo do quintal e, mesmo assim, tinha uma cancela que dava acesso entre um quintal e outro. Vizinhos se visitavam cotidianamente, era uma comunidade.
Numa rua, num bairro, você tinha uma vizinhança que conversava junto. As pessoas trabalhavam e, quando chegavam do trabalho, sentavam na calçada, na varanda e iam conversar “abobrinhas”, apenas pra estar juntas. Era um espaço genuinamente afetivo, aconchegante, onde o pacto social do “eu te protejo e você me protege” estava presente.
Hoje, estamos desfazendo esse pacto. A sociedade foi se fechando, dando muita ênfase à privacidade, construindo muros cada vez mais altos, instalando cerca eletrificada e instrumentos de seleção de pessoas. As famílias foram se enclausurando em casas lindíssimas, que são verdadeiros mausoléus...
E ficamos solitários dentro de casa, cada um dentro do seu mundinho particular, a ponto de desenvolver em nós a chamada síndrome do espectador, que é exatamente o máximo de manifestação do desamor.
O que seria essa síndrome do espectador?
É o caminho inverso do que Jesus nos ensinou, que nos amássemos uns aos outros como Ele nos amou. Se esse é o caminho, a verdade e a vida, então nós erramos a trajetória, e erramos feio, porque estamos indo exatamente para o lado oposto.
Quando optamos pelo individualismo, pela competição, por todas essas possibilidades de fazer a nossa vida existir de forma solitária, cada um pra si e Deus pra todos, indiferente com a dor do outro, desenvolvemos a tal “síndrome do espectador”.
Com ela, eu não mais percebo a dor, o sentimento do outro. Isso é a quebra do pacto do “eu te protejo, você me protege”. Quando chega nesse nível, a sociedade se esgarça e a violência passa a ser a manifestação predominante entre nós, porque ela é a indiferença.
E a indiferença é o contrário de amor, não é?
Sem dúvida. O ódio não é o contrário de amor, o ódio é o amor que se estraga. Às vezes, é a mesma manifestação, é a mesma moeda do amor. O contrário de amor é a indiferença, é a incapacidade de eu reconhecer o outro como tal. Essa é a dureza da nossa vida. Reverter isso, sair da condição de egocêntricos, de individualistas, é a grande tarefa que nós temos pela frente.
Lacan, um dos grandes pesquisadores da psicanálise, falava que o ser humano nasceu para cuidar e ser cuidado, para amar e ser amado. Quando negamos isso, nos desestruturamos, nos tornamos inseguros, passamos a ter medo da vida, e o medo nos faz entrar na defensiva, na violência. Negamos a sexualidade, que são todas as redes de afeto que nós temos, a base da construção da individualidade.
Se eu nego isso e vou para a via da violência, da competição, o outro passa a ser meu inimigo, passa a ser perigoso pra mim. Então, eu nego o encontro com ele. Se eu nego o encontro com ele, nego a minha individualidade, porque eu não o conheço, nem me conheço.
Sem o contato, sem o afeto, tento preencher esse vazio através do consumismo. Estou triste, vou comprar uma coisa pra me dar de presente. Como aquilo não supre a minha carência dos afetos, eu preciso de outro, e outro, e outro... e entro numa compulsão de consumo, num processo de adoecimento.
Nós consumimos tudo: produtos, roupas, comidas, bebidas. Tem gente que consome pessoas. Todo dia ela experimenta um e descarta logo a seguir, não permite que o encontro aconteça, fica apenas na pseudosexualidade, cuja referência são os filmes pornôs, verdadeiras manifestações de violência extrema entre um ser humano e outro.
Tanto é que, ao final, a pessoa faz aquela pergunta cínica pra saber quem teve melhor atuação na performance sexual: “foi bom pra você?”. É uma pergunta cínica que denuncia a violência que foi praticada ali, porque não houve um encontro, um afeto, houve uma disputa de egos, de corpos sarados, de performances, uma disputa vazia, sem sentido.
É por isso que se sai de uma relação dessas mais carente do que quando entrou. E vem a compulsão do consumo, tenta mais um e tenta mais um... E não vai conseguir achar...
Às vezes, vamos encontrar realmente a nossa satisfação, segurando na mão do companheiro deitado num leito de hospital, todo quebrado... Apenas segurando a mão dele, olhando nos olhos dele e sentindo a sexualidade plena, a alegria de estar com o outro, sabendo que o outro está com você. Esse é o encontro que faz com que o ser humano seja pleno, saudável, seguro, confiante. O pacto está lá, “eu te protejo, você me protege”.
Mais alguma observação?
Estamos diante de uma encruzilhada, é a nossa escolha agora. Queremos seguir por essa linha da competição, do individualismo, do consumismo pra tentar suprir nossas faltas? O que realmente queremos das nossas vidas? O que realmente vale pra nós?
É importante ter a consciência de que das nossas escolhas vão surgir as nossas dores ou prazeres. A nossa felicidade ou infelicidade está nas nossas mãos, nós somos livres para escolher. E tomara que sejamos livres e conscientes, para fazer as escolhas que sejam boas, não só pra nós, mas pra todos que nos rodeiam.
(A foto da criança em destaque é meramente ilustrativa e foi retirada da internet.)